Presidente da Comissão para a Doutrina da Fé da CNBB esclarece sobre confusões em relação à fé que circulam nas redes sociais a respeito da Covid-19
03/04/2020O Papa reza pelos presos e pensa nos pobres: neles Jesus se identifica
06/04/2020
Pelo menos em uma coisa o coronavírus me ajudou: estou, praticamente, decidido sobre o que estudar na faculdade. Ou vai ser tecnologia da informação ou direito. Sim, são cursos bem diferentes, mas o motivo para escolher um dentre esses dois é o mesmo: se, no futuro, houver outra pandemia, eu preciso ser um hacker ou um legislador, para poder, de alguma maneira, limitar o número de bobagens que as pessoas publicam neste tempo.
Como meu pai está de quarentena em casa, porque viajou recentemente para São Paulo, ele não consegue fazer outra coisa que não acompanhar cada notícia, vídeo, áudio, texto ou meme que recebe nos seus incontáveis grupos de WhatsApp e encaminhar tudo de volta para os grupos e contatos que ele tem. É um trabalho árduo de informação, diz ele, mas alguém tem que fazer. E fala isso com um ar de seriedade que constrange.
Se ficasse só no WhatsApp, eu nem me importaria tanto. O problema é quando essa histeria me alcança. Vou escrever e ninguém vai acreditar, mas vou escrever mesmo assim, para que vocês saibam o tipo de pais que eu tenho e o tipo de filho obediente que sou. Não temos saído de casa para nada, exatamente como manda o figurino, exceto quando absolutamente necessário. E hoje foi um desses dias. Alguém tinha que ir à mercearia. Pão, queijo, banana, laranja, maçã, alface. Minha mãe decidiu – a partir de algum vídeo que recebeu no WhatsApp – que comer frutas e verduras é fundamental para melhorar a imunidade, principalmente quando estamos sem tomar sol, trancafiados o dia inteiro num apartamento.
Coronavírus e uma simples ida à mercearia
Decidir quem iria sair de casa para fazer esse serviço não foi difícil: meu pai ainda não completou os sete dias de quarentena, minha mãe é hipertensa, e minha irmã só tem dez anos; então, não havia outra opção além de mim. Aliás, vale a pena abrir aqui um parênteses para falar da minha irmã. Tudo bem que ela só tem dez anos, mas desconfio que ela só descobriu que estávamos confinados anteontem, no quinto dia!
Eu até gosto de celular, mas ela estabeleceu um padrão inédito quando o assunto é vício. Ela consegue fazer tudo sem tirar os olhos da tela e os fones dos ouvidos: tomar café, escovar os dentes, tomar banho, ver televisão, dormir… O pior é que, agora que ela descobriu sobre o coronavírus, sei que ela torce, interiormente, para o mundo virar um cenário de The Walking Dead. Não sei de onde ela tirou a ideia de que uma menina que não consegue lavar um prato iria conseguir escapar de um zumbi.
Esqueçamos minha irmã e voltemos à minha aventura fora de casa. Como falei, ficou decidido que eu iria, e eu estava bem tranquilo quanto a isso. Eu até iria me voluntariar mesmo. Só que eu não estava preparado para o que minha mãe iria aprontar.
Eu peguei o dinheiro na caixinha e ia saindo, com a pequena lista gravada na memória. Minha mãe deu um grito quando viu que abri a porta e me ordenou que voltasse. Passou quase cinquenta minutos explicando os cuidados que eu teria que ter, desde a hora em que fosse apertar o botão do elevador (ela tinha visto um vídeo sobre usar palitos de dente para não se contaminar), até a hora de pegar o troco. Mas quem deixou o processo incrivelmente lento foi meu pai.
Para cada recomendação da minha mãe, ele dizia que tinha visto um vídeo falando exatamente daquilo, e falava e-xa-ta-men-te, separando bem as sílabas, como algum professor seu deve fazer na escola. Aí, minha mãe precisava parar e esperar meu pai procurar o vídeo no celular, o que demorava muito, porque além de ele participar de trocentos grupos, ele nem sabe mexer no WhatsApp direito.
Todo cuidado é pouco?
O resultado, para encurtar a conversa, é que para poder ir para a mercearia, que fica a menos de cem metros do nosso condomínio, tive que vestir calça, sapato, uma camisa UV amarela, uma jaqueta de couro do meu pai e, pasmem!, as joelheiras, cotoveleiras e o capacete que eu usava quando tinha doze anos e andava de skate. Como não tínhamos máscara, minha mãe improvisou uma usando um lenço rosa da minha irmã. Para completar o figurino, que parece ter saído de algum filme pós-apocalíptico, meu pai me fez usar os óculos escuros dele, que devem ter saído da moda antes de ele conhecer a minha mãe. Minhas armas? Três tubinhos carregados de álcool em gel.
Minha mãe se despediu de mim como se nunca mais fosse me ver – e confesso que essa era a minha vontade naquela hora. Eu nem poderia me livrar de tudo quando descesse do elevador, porque estariam todos me acompanhando pela janela.
Nem vou contar como foi a reação das pessoas quando entrei na mercearia vestido daquela maneira. Para encerrar, quando eu estava voltando, todos me aguardavam na janela. Assim que me viu de lá de cima, minha mãe fez festa, meu pai começou a me filmar, certamente para mandar para os grupos dele, e minha irmã… Bem, minha irmã não conseguiu esconder a decepção dela. Tenho certeza de que, na imaginação dela, eu voltaria correndo, sendo perseguido por centenas de zumbis.
Por José Leonardo Ribeiro Nascimento – Missionário da comunidade Canção Nova – Aracaju (SE), via Canção Nova