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Desde o século XIX, a humanidade experimenta cada vez mais sua “emancipação” das forças da natureza. A ciência e a técnica, com os avanços na medicina, no saneamento básico, na produção de alimentos, nos transportes e comunicações, nos permitem viver cada vez mais e melhor que nossos antepassados. Nos vemos distantes de um mundo em que as famílias perdiam muitos filhos por doenças na infância; onde a comida podia facilmente faltar à mesa por conta de um inverno rigoroso; as ruas fediam, com lixo, esgoto e agentes infecciosos por toda parte. Contudo, esse foi o mundo durante cerca de 90% da história do cristianismo.
Naquele contexto, compreende-se que a relação do povo cristão com Deus fosse marcada pelo sofrimento, o medo e o desconhecimento. A arte sacra e a religiosidade popular se conduziam para um pietismo que valorizava o Cristo sofredor, como se a Sexta-feira Santa não antecedesse o Domingo da Ressurreição. A teologia até cunhou um termo, o “Deus das lacunas”, para designar um entendimento de tudo aquilo que a ciência e a razão não conseguiam explicar (as lacunas de conhecimento) como vontade aleatória de Deus.
A superação dos limites da natureza, nos tempos atuais, estimulou a ideia de nossa autossuficiência em relação a Deus. As lacunas do conhecimento estariam sendo superadas pela ciência; a dor e o sofrimento pelos avanços da medicina. Até a fome e a pobreza – frutos de relações injustas na sociedade – estariam sendo superadas pelo desenvolvimento econômico e tecnológico. Não haveria mais motivo para rezar, para pedir a proteção e a luz de um Outro.
A volta ao tempo da dor e da morte
O termo latino fanum indica o lugar do altar, onde se fazia a oferenda sacrifical ao deus. O pro-fanum seria o espaço que se estende à frente do fanum, onde ficavam os que não tinham relação direta com a divindade. Nos ritos antigos, muitas vezes a assembleia nem mesmo tinha acesso visual ao fanum (separado, no templo judeu, pelo véu que se rasgou no momento da morte de Jesus, cf. Mt 27, 51).
Por analogia, poderíamos dizer que vivemos, cada vez mais, num tempo profano (pro-fanum), onde “comemos e bebemos, casamos e nos damos em casamento” (cf. Lc 17, 27-28), isto é, vivemos mergulhados em nossas preocupações e ocupações, voltados a projetos de poder, sonhos de consumo ou mesmo atividades altruístas – sem olharmos o mistério do mundo. Mas, quando chega a morte, quando temos que lidar com a dor da perda da pessoa amada ou com nossa própria finitude, somos como que imersos no tempo do fanum, onde nossos olhos se abrem para nossa fragilidade diante da imensidão do universo, do desígnio de Deus sobre nós.
Grandes desastres naturais, como terremotos, tsunamis e pandemias, nos obrigam a um mergulho coletivo nesse tempo do fanum, questionando nossa autossuficiência, olhando a nós mesmos como aqueles que “estão vivendo nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1, 79). Nesse sentido, nossa Quaresma de 2020, dominada pelo coronavírus, é um tempo de graça particular: talvez em nenhuma outra ocasião teremos nossa finitude tão escancarada a nossa frente. Todas as ilusões de autossuficiência, todos os avanços da ciência e da técnica, se mostram frágeis e limitados diante de um vírus que aterra e dobra as maiores potências militares, paralisa as economias mais ricas e confunde os cientistas mais brilhantes.
Uma doce alegria diante do medo
Nessa Quaresma de 2020, vivemos como numa longa Quarta-feira de Cinzas, na qual nos lembramos continuamente que “somos pó e ao pó retornaremos” (cf. Gn 3, 19). Esse é um poderoso estímulo para a contrição e a conversão do coração, mas poderia nos levar a um errônea volta ao passado, a uma relação com Deus novamente marcada pelo temor e pela insegurança. Se assim for, será uma experiência pouco incidente na mentalidade contemporânea, a ser esquecida quando a pandemia passar.
Santo Agostinho, por conta de sua obra clássica, Confissões, foi interpretado por alguns como um moralista que só pensava em pecados. Se assim fosse, ele não teria sido o grande santo católico que foi. Agostinho não estava fixado em seus erros, mas na misericórdia de Deus. Quanto mais falava de suas faltas, mais ficava fascinado com o tanto que Deus o amava, apesar de seus pecados. É com espírito semelhante que somos chamados a viver esse tempo de provação por causa do coronavírus.
O Papa Francisco escreveu: “O amor de Deus é a razão fundamental de toda a criação […] Cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho” (Laudato si’, LS 77). Num primeiro momento, pode parecer que o Papa se refere a insetos, protozoários e (vejam só!) até vírus. Mas, se olhamos melhor, veremos que isso também vale para nós. Diante de Deus eterno e infinito e do universo por Ele criado, também somos seres pequenos e insignificantes, que vivem nesse mundo numa fração infinitesimal da eternidade. Pequenos e frágeis, morremos pelos erros e desmandos de outros humanos tão insignificantes quanto nós, pela ação de grandes forças da natureza ou de pequenos microrganismos ainda menores do que nós…
Mesmo assim, naqueles poucos instantes de nossa existência, Deus nos envolve com seu carinho! Essa não é só uma Quaresma para nos arrependermos de nossos pecados. Também isso, mas talvez o mais importante seja, diante de nossa pequenez e fragilidade, compreendermos ainda mais o quão grande é o Seu amor por nós. E então, a Quaresma do coronavírus será o tempo da doce alegria dos que se sabem muito amados.
Via Aleteia