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Bíblia é misógina? Certamente não, se buscarmos compreender o profundo significado dos textos! As mulheres ocupam um lugar central em muitas histórias. Elas mostram todas as possibilidades onde a inteligência, coragem e também a ternura estão presentes na personalidade da mulher. Leiamos as explicações de Anne-Marie Pelletier, exegeta e professora da Escola Catedral de Paris, autora de vários trabalhos sobre mulheres e a fé cristã.
No Antigo Testamento, desde o início, as mulheres ocupam o segundo lugar: elas são criadas após os homens. Quer dizer então que não há paridade?
Dois lembretes são essenciais. Primeiro, se a Bíblia é um livro sagrado, ela tem a particularidade de revelar Deus como aquele que se une à humanidade onde está, da forma como ela vive, com sua generosidade e falhas. Portanto, não surpreende que o texto reflita parcialmente as injustiças, a violência e também a misoginia que nossas sociedades transmitem. Em segundo lugar, os primeiros capítulos de Gênesis não são uma reconstrução da origem, mas uma meditação teológica muito fina sobre a humanidade. Essa reflexão também passa por uma linguagem que já não entendemos bem. Daí a necessidade de um olhar atencioso.
Na Bíblia há dois relatos da criação da humanidade e um que descreve a criação da mulher no Jardim do Éden. Antes de lê-lo, você deve primeiro ouvir o primeiro. Descobrimos então um casal humano onde cada um tem o seu lugar, contudo estão no mesmo nível de importância: “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus que ele o criou, criou-os homem e mulher” (Gn 1, 27). E os dois recebem aqui a Criação para gerenciar. E é um unido com o outro, que são qualificados com o belo título de “imagem de Deus”.
Como podemos criar dois seres diferentes à imagem de um único Deus? Qual é o significado dessa diferença?
Essa diferença nos mostra coisas fundamentais sobre nós e sobre Deus, porque a humanidade não é criada por Deus como uma realidade que seria estranha a ele. Se ela existe de forma estruturada pela relação do masculino e do feminino, é porque o próprio Deus é relação, sendo ainda assim Deus único. Assim, desde o Antigo Testamento, muito antes de o mistério da Trindade ser revelado, existe essa consciência de que o Deus único é simultaneamente um Deus de troca, de relacionamento. Ele não está sozinho, eternamente encarando a si mesmo, ele é o amor. Nossa humanidade “à sua imagem” não pode existir senão de forma relacional.
A mulher é criada para ser uma “ajuda” para o homem (Gn 2, 18). Como explicar isso sem limitar o lugar da mulher a um papel de subordinado?
Primeiro, é preciso entender a palavra “ajuda” corretamente, pois ela ressoa o seu significado em hebraico e não nas conotações atuais. Esta palavra, na Bíblia, é aplicada a Deus. Nada menor que o próprio Deus! Ele é “o ajudante”, isto é, a ajuda daqueles que estão ameaçados de morte. Portanto, o termo é muito menos pejorativo para as mulheres do que pensamos! E, de fato, o primeiro humano precisa precisou estar face a face com o outro para poder existir. Caso contrário, é como Narciso que se afoga enquanto se contempla.
Quanto à sentença de Paulo, que nos lembra – “A mulher foi criada para o homem” (1 Cor 11, 9) – ela é certamente bastante provocadora e já foi muito explorada a serviço da injustiça. No entanto, “ser para o outro”, quando alguém é cristão, é algo bem diferente de viver uma alienação. É uma maneira de parecer com Deus! Aquele que é “para nós”, desde a Criação até a hora da recriação que ele fez na pessoa e na obra de seu Filho. Portanto, esse “para o outro” é também o que o homem, ser masculino, terá que viver, à imagem da primeira mulher. Pois somente assim a imagem de Deus revelada por Cristo será impressa nele.
Segundo o Gênesis, o pecado é introduzido pela mulher. No entanto, Deus pune homens e mulheres. Por que fazer então as mulheres se sentirem culpadas?
Em nenhum lugar do Gênesis se diz que as mulheres são mais culpadas que os homens. O texto bíblico é muito mais rico! Na história, a desobediência é compartilhada, assim como o é o fruto da árvore proibida. De fato, a sutileza do texto consiste em evocar algo da misteriosa solidariedade que une as gerações humanas e que mostra que somos frágeis diante da tentação. Uma maneira de expressar isso é colocar em evidencia aquela que dá à luz a todas as gerações, ou seja, uma mulher.
Assim, portanto, é de fato “por um só homem” (cf. Rm 5, 12), figura da humanidade, que o pecado entra no mundo, e não por um fracasso da mulher do qual o homem estaria isento. Então, a humanidade dará à luz, através das mulheres, a filhos, que por sua vez ratificarão a recusa da palavra de Deus, que por sua vez suspeitarão que Deus é um rival ameaçador, que se estabelecerão em desobediência.
Na Bíblia existe um esboço da feminilidade e seu status em relação ao homem, como Deus originalmente pretendia?
A Bíblia está cheia de figuras femininas, algumas negativas e outras positivas. Muitas vezes elas aparecem na sombra dos homens, dominados por eles. E, no entanto, também aqui, o leitor atento percebe que muitas dessas mulheres são de igual importância em relação aos homens. Essas mulheres sabem combinar humildade e confiança, como Ana, mãe de Samuel. Elas são capazes de manter a esperança no centro mesmo nas situações de derrota ou humilhação, como foi o caso de Judite. Nós as encontramos vigiando a vida ameaçada e ultrajada, como Rispa, que atravessa brevemente o Segundo Livro de Samuel, mas que mostra tão bem a força da compaixão. O tempo todo, desde as matriarcas, sem as quais a promessa feita a Abraão teria sido em vão, essas mulheres vêm em auxílio da vida, contra a morte, como Deus. E ensinando sobre essa prioridade, elas também preparam Israel, e depois preparam a nós mesmos para seguir, para reconhecer o triunfo da vida sobre todos os poderes da morte.
Podemos notar o surpreendente versículo em São Paulo, onde ele anuncia que com Cristo “não há mais homem nem mulher” (Gálatas 3, 28). Então, a diferença entre os sexos é abolida e com ela a complementaridade?
Obviamente não! Interpretar as palavras de São Paulo nesse sentido é assumir que Deus se contradiz. Se, a partir do momento de sua criação, a humanidade é sexuada com o significado que dissemos acima, a humanidade restaurada em sua verdade por Cristo não pode deixar de ser estruturada pela diferença de sexo. Cristo não destrói o que está no começo. Ele não deseja nos introduzir num tipo de indiferenciação que tornaria o relacionamento supérfluo ou impossível. Pelo contrário, torna a verdade original acessível novamente.
É por isso que precisamos compreender, nessas palavras da Carta aos Gálatas, o anúncio de que não há mais o homem e a mulher limitados por uma inimizade despertada entre eles pelo pecado. Somente essa inimizade é superada. Porque a resistência que Gênesis 3 descreve sobre luxúria e sedução, é agora superável, finalmente! Homem e mulher encontram então a verdade de sua criação.
O relacionamento exultante descrito pelo Cântico dos Cânticos não é mais um sonho ou uma aspiração que muitas vezes nos decepciona. Pelo contrário, ele pode ser vivido na vanguarda de uma experiência mútua que enfrentou, no poder de Cristo, todas as dificuldades da vida em comum.
No famoso versículo “mulheres, sujeite-se aos seus maridos” de São Paulo, devemos ver a prova de seu machismo, ou isso deve ser atribuído ao contexto cultural?
São Paulo tem uma má reputação neste ponto com muitos cristãos. Claro, ele é um homem do seu tempo, caso contrário, ele seria apenas um fantoche. Mas acima de tudo ele é alguém que examina e entende as coisas à luz de Cristo.
Portanto, devemos questionar o texto, para alcançar seu verdadeiro significado, sabendo que ele só pode ser esclarecido à luz do próprio Cristo vivo, obediente até a morte, para salvar os homens e dar-lhes uma parte em sua vida filial. Vamos aceitar estudá-lo além de seu contexto e tempo até alcançar uma verdade que abranja todos os cristãos. Se São Paulo simplesmente convidasse as mulheres a serem servas diante de seus maridos, ele trairia a vontade de Deus, que nos quer livres, da liberdade que nasce do amor e que é o seu principal sinal.
De fato, esta Carta aos Efésios começa com um chamado dirigido a todos, homens e mulheres: “Sejam submissos um ao outro no temor de Cristo”. A submissão não é, portanto, algo que seria reservado apenas para as mulheres. Além disso, e mais uma vez, a submissão em questão aqui encontra seu significado somente quando se refere à pessoa de Jesus, à maneira pela qual ele mesmo viveu a submissão, a do amor, pelo amor.
Entrevista por Florence Brière-Loth
Via Aleteia