Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 promove encontro de formação em dezembro
19/11/2020Papa: “com alma”, os latino-americanos podem superar a crise provocada pela pandemia
20/11/2020
Em vinte séculos de cristianismo, são muitas as descrições de orações extraordinárias onde Deus, por Sua iniciativa e vontade, eleva a alma a um contato e intimidade superiores. Este estado geral, por ocorrer de forma passiva para a alma, ou seja, pela ação de Deus e não sua, recebeu o nome de contemplação.
Santa Teresa D’Ávila descreveu várias de suas experiências contemplativas, mas, indo mais além, também categorizou e explicou-as uma a uma. Desse modo, na metáfora do jardim ou horto que temos estudado, as duas primeiras formas de regar são as orações, as duas últimas, as contemplações.
Passemos, agora, a entender esses graus de orações místicas ou contemplações que se desenvolvem na alma quando não é mais seu esforço que busca prover o jardim sedento de água, mas a própria iniciativa de Deus em regá-lo. O princípio geral da contemplação, como vimos no artigo anterior, permanece. O que muda é sua intensidade. A princípio, suave e quase imperceptível, depois tornando-se um vínculo tão forte quanto inegável.
Na oração mística, o cristão percebe a ação de Deus
É devido a essa suavidade inicial que Santa Teresa (assim como São João da Cruz) alerta para que aquele que chegou a tal estado não se engane achando que nada acontece. De fato, ela diz que “Logo lhes parece ser perda de tempo, e tenho eu por muito ganho esta perda” (Vida 13,11). Ou seja, a alma que não consegue mais meditar e realizar suas orações costumeiras, inebriada por essa presença amorosa de Deus que, há um só tempo a requisita enquanto a impede de se dedicar a outras coisas, teme estar perdendo tempo.
Isso acontece, pois, nos primeiros graus de oração mística, embora o cristão perceba a ação de Deus na contemplação, quando a deixa tem a forte impressão de que pode estar se enganando ou que possa estar sendo enganada. Um cálculo rápido sobre todas as práticas espirituais que realizava e as que agora não realiza, fortalece essa dúvida.
Recolhimento Infuso
Um engano que só será desfeito mais para frente, à medida que a vida espiritual se aprofundar. Chegaremos lá! Comecemos pela primeira das orações místicas: a oração de Recolhimento Infuso.
Segundo Santa Teresa, este é “Um recolhimento que também me parece sobrenatural, porque não é estar nublado nem fechar os olhos, nem consiste em coisa exterior, posto que, sem querê-lo, faz-se isto de fechar os olhos e desejar a solidão: e sem artifício parece que se vai esculpindo o edifício para a oração que dissemos” (Castelo Interior 4M 3,1).
De fato, é sobrenatural, pois a alma consegue se recolher em oração de um modo que nunca conseguiu antes e que, claramente, entende que não seria possível mesmo com muito treino. Por isso “infuso”, colocado dentro por Deus mesmo. É perceptível que “se sente notavelmente um recolhimento suave no interior” (Castelo 4M 3,2) onde, embora aparentemente nada tenha mudado, aquele que reza consegue perceber uma total concentração e permanência no interior de si mesmo.
Aqueles incontáveis momentos (talvez anos) de inquietude ao se colocar em oração simplesmente desaparecem e a própria experiência anterior das tentativas frustradas em se acalmar e concentrar colaboram para essa percepção de que é uma graça sobrenatural. O recolhimento infuso proporciona uma conexão direta com Deus que, embora possa ser rompido a qualquer momento pela vontade livre, mostra-se sólido e eficaz.
A contemplação ainda é obscura, árida e insípida. Isto é, ainda é uma comunicação geral e amorosa como ensina São João da Cruz, não proporciona um esclarecimento sobre si mesma, não fornece novos sabores. Só inegavelmente está lá e, do mesmo modo, claramente não poderia ser produzida pelo ser humano.
Essa oração, verdadeira água enviada por Deus num momento e sem trabalho algum, é o início da união plena se que formará mais adiante. Nestes primeiros graus ou fase conformativa, irá anexando uma a uma cada vez mais as faculdades e potências da alma.
A vontade é atraída por Deus
No recolhimento infuso, é a vontade que é atraída por Deus. Por isso, esse assombro da inteligência ao perceber que, sem a sua participação, a comunicação aconteceu. E exatamente por não envolver a inteligência e nem seus atributos da memória e da imaginação é que é possível uma análise da mente durante essa primeira contemplação.
Também, ainda é possível as terríveis divagações da imaginação. Essas “distrações”, se por um lado são ruins, pois faz a alma se dividir sob si mesma, por outro lado atestam que a origem deste movimentação-comunicação não é do homem, mas de Deus: mesmo distraindo-se ou divagando com a mente, ela não acaba e nem é interrompida.
Trata-se, portanto, de um convite de Deus para o recolhimento e o concentrar-se em si mesmo. Convite que Ele mesmo realiza e que prepara a alma para as orações superiores que virão. Como os doutores da Igreja, também o padre e teólogo Royo Marín alerta que nada disso pode ser produzido pelo esforço humano e recomenda para quem ainda não recebeu semelhante graça: “Guarde-se, todavia, de forçar as coisas. Deus chegará em sua hora” (Teologia da Perfeição Cristã, 558).
Oração de Quietude
Os que se tornam dóceis ao recolhimento infuso, Deus acrescenta um novo grau de contemplação mística: a Oração de Quietude.
Santa Teresa, trata dessa oração em várias de suas obras. É a água que finalmente transborda vindo de uma fonte subterrânea e escondida (Castelo 4M 2,4); é por a alma em paz e na presença do Senhor (Caminho de Perfeição 31). Ou, como tão bem explica São João da Cruz (Noite Escura II 2,12) é quando finalmente une-se em contemplação o entendimento junto com a vontade que já estava cativa desde a oração anterior.
Essa é a grande novidade nessa nova contemplação: o entendimento também começa a se submeter à passividade proposta por Deus. A noite ativa dos sentidos, como a nomeia São João da Cruz, se adensa. Santa Teresa a descreve assim: “Deste recolhimento vem algumas vezes uma quietude e paz interior muito generosa, que a alma fica de modo que não lhe parece faltar nada, mesmo assim o falar lhe cansa, assim como rezar e meditar; não queria senão amar” (Livro das Relações 1).
Ocupando mais potências, os frutos também se tornam mais visíveis. Por isso a santa refere que aquilo que anteriormente era somente uma concentração (recolhimento infuso), agora provoca também paz, quietude, repouso, refrigério, fortaleza e felicidade: “Sente-se grandíssimo deleite no corpo e grande satisfação na alma” (Caminho de Perfeição 31,2-3).
São Bernardo, ao comentar esse tipo de contemplação, diz: Rara hora, brevis mora!
Deus introduz a alma ao seu Reino
Quer com isso dizer que, embora breve, grande proveito traz essa união. Embora curta, é ansiosamente esperada. Compara-se ao repouso do meio-dia, exercitado principalmente na Itália e na Espanha, um momento de refazer as forças antes de voltar à luta cotidiana. Ou, usando a imagem do Cântico dos Cânticos, após receber esse influxo de amor divino que produz extremos deleites (Ct 1 1-4), a alma sente-se ansiosa por encontrar esse amor e gozá-lo plena e permanentemente, por isso quer saber onde ele está ao sol do meio-dia (Ct 1,7).
Na oração de quietude, Deus finalmente começa a introduzir a alma em seu Reino. A alegria e deleite da posse do verdadeiro amor começa, portanto, a ser sentida. Embora seja por pouco tempo ainda, é o suficiente para despertar grandes desejos de união e para não permitir que as divagações da imaginação ou da memória prejudiquem por demais esta contemplação.
A oração de união
Por último, a contemplação plena onde todas as potências estão alinhadas, recebe o nome de oração de união. A partir daí, como veremos nos próximos artigos, começará a fase transformativa onde não é mais a quantidade de potências unidas em contemplação que faz a diferença, já que a oração de união atinge a plenitude delas, mas o tempo de permanência nessa união.
Essa união total é assim descrita por Santa Teresa no “Castelo Interior” (5M, 2): “Fixa Deus a Si mesmo no interior daquela alma de tal maneira que quando torna a si de nenhum modo pode duvidar que esteve em Deus e Deus nela”. Acabaram-se aqui as dúvidas, inteligência e vontade, junto com todas as demais faculdades interiores, estão unidas.
É o momento em que vida ativa e contemplativa estão em consonância. Já é possível dedicar-se a todas as obras exteriores mantendo uma íntima conexão com Deus. Claro, ao contrário do que ainda virá, essa união é atual, mas não é sensível. Ou seja, a presença de Deus não é sentida enquanto se exerce outras atividades exteriores, mas basta um minuto de recolhimento interior para perceber que ela não se desfez, está presente.
Nos momentos de pura oração de união, é impossível imaginação ou memória importunarem. Finalmente, aqui, acabam-se as distrações na oração. Pouco a pouco, a união da inteligência e da vontade irão se fortalecer no contato com Deus. E é por isso que este tipo de contemplação, segundo Santa Teresa “não cansa, refaz” (Livro da Vida 18,11) e que vemos, na prática, tanto Jesus nos Evangelhos como inúmeros santos na história, permanecerem noites inteiras (ou dias) em oração contemplativa e voltarem completamente revigorados.
Por Flávio Crepaldi, via Canção Nova