Via-Sacra: vergonha, arrependimento e esperança diante do Senhor
01/04/2018Papa na Vigília Pascal: em meio ao silêncio, as pedras começam a gritar
01/04/2018O Papa Francisco presidiu, na Basílica de São Pedro no Vaticano, a celebração da Paixão do Senhor nesta Sexta-feira Santa, 30 de março, que teve por homilista o pregador da Casa Pontifícia, Pe. Rainiero Cantalamessa.
Em uma Basílica completamente desprovida de ornamento e iluminada por uma luz suave em consonância com a sobriedade da cerimônia, em que não se celebrou a Eucaristia, o Santo Padre, vestido de paramentos vermelhos em lembrança do sangue de Cristo derramada na Cruz, assim como os outros celebrantes, prostrou-se no chão, diante do altar, para orar durante uns minutos.
Depois desses minutos de silenciosa oração, acompanhado de todos os fiéis ajoelhados presentes dentro da Basílica de São Pedro, o Pontífice ficou de novo em pé para começar com a proclamação da liturgia da Palavra.
Além da oração da Papa ante o altar, um momento de especial emotividade espiritual foi o descobrimento e adoração da Cruz aclamada três vezes com as palavras: “Eis o Lenho da Cruz, do qual pendeu a salvação do mundo. Vinde Adoremos!”.
O pregador da Casa Pontifícia, Pe. Rainiero Cantalamessa, pronunciou a homilia, como nas ocasiões anteriores deste pontificado. Nesta ocasião refletiu sobre o testemunho dos que presenciaram a crucificação.
A seguir, a íntegra da homilia do pregador da Casa Pontifícia, disponível no site oficial de notícias do Vaticano em Português (https://www.vaticannews.va/pt.html):
“Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água. O que foi testemunha desse fato o atesta (e o seu testemunho é digno de fé, e ele sabe que diz a verdade), a fim de que vós creiais.” (Jo 19, 33-35).
Ninguém jamais será capaz de nos convencer de que esta atestação solene não corresponda à verdade histórica, que quem afirma ter estado presente e visto, na realidade, não estava presente nem viu. Neste caso, vai depender da honestidade do autor. No Calvário, aos pés da cruz, estava a mãe de Jesus e, ao lado dela, “o discípulo a quem Jesus amava”. Nós temos uma testemunha ocular!
Ele “viu” não apenas o que acontecia sob o olhar de todos. À luz do Espírito Santo, depois da Páscoa, ele também viu o sentido do que acontecera: que naquele momento estava sendo imolado o verdadeiro Cordeiro de Deus e era realizado o sentido da Páscoa antiga; que Cristo na cruz era o novo templo de Deus, de cujo lado, como o profeta Ezequiel predisse (47, 1 ss.), jorra a água da vida; que o espírito que ele emite no momento da morte dá início à nova criação, como “o espírito de Deus”, pairando sobre as águas, tinha transformado no princípio o caos no cosmos. João entendeu o significado das últimas palavras de Jesus: “Tudo está consumado” (Jo 19, 30).
Mas por que, nos perguntamos, essa ilimitada concentração de significado sobre a cruz de Cristo? Por que essa onipresença do Crucifixo em nossas igrejas, nos altares e em todos os lugares frequentados pelos cristãos? Alguém sugeriu uma chave para a leitura do mistério cristão, dizendo que Deus se revela “sub contraria specie”, sob o contrário daquilo que ele na verdade é: revela seu poder na fraqueza, sua sabedoria na loucura, sua riqueza na pobreza …
Esta chave de leitura não se aplica à cruz. Na cruz Deus se revela como “sub propria specie”, pelo que ele é, na sua realidade mais íntima e mais verdadeira. “Deus é ágape”, escreve João (1 Jo 4,10), amor oblativo, e somente na cruz se torna manifesto quão longe vai esta infinita capacidade de autodoação de Deus. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1); “De tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu (à morte) seu filho único” (Jo 3, 16); “Me amou e se entregou (à morte) por mim” (Gl 2, 20).
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No ano em que a Igreja celebra um sínodo sobre os jovens e quer colocá-los no centro da sua preocupação pastoral, a presença no Calvário do discípulo a quem Jesus amava contém uma mensagem especial. Temos todos os motivos para acreditar que João aderiu a Jesus quando ainda era muito jovem. Foi uma verdadeira paixão. Todo o resto deixou, de repente, de ter importância. Foi um encontro “pessoal”, existencial. Se no centro do pensamento de Paulo está a obra de Jesus, o seu mistério pascal de morte e ressurreição, no centro do pensamento de João está o ser, a pessoa de Jesus. Daí todos aqueles “Eu sou” das ressonâncias eternas que abundam em seu Evangelho: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, “Eu sou a luz”, “Eu sou a porta”, “Eu sou”, e basta.
João era quase certamente um dos dois discípulos do Batista que, ao aparecer na cena de Jesus, foi atrás dele. À pergunta deles: “Rabino, onde você mora?”, Jesus respondeu: “Venham e vejam”. “Então eles foram e naquele dia ficaram com ele; era cerca de quatro horas da tarde” (Jo 1, 35-39). Naquela hora, ele decidira de sua vida e nunca o esquecera.
Neste ano, esforçar-nos-emos justamente por descobrir com eles o que Cristo espera dos jovens, o que eles podem dar à Igreja e à sociedade. O mais importante, porém, é fazer os jovens saberem o que Jesus tem para lhes dar. João descobriu ficando com ele: “vida em abundância”, “alegria plena”. Quem mais do que Jesus tem respostas para dar aos jovens de hoje e de todos os tempos?
Façamos de tal forma que em todos os discursos sobre jovens e aos jovens ressoem de fundo o sincero convite do Santo Padre na Evangelii gaudium: “Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito” (EG, n º 3). Encontrar-se pessoalmente com Cristo é possível também hoje porque ele ressuscitou; é uma pessoa viva, não um personagem. Tudo é possível depois deste encontro pessoal; nada mudará realmente na vida sem isto.
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Além do exemplo de sua vida, o evangelista João também deixou uma mensagem escrita aos jovens. Em sua primeira carta, lemos essas comoventes palavras de um homem idoso dirigidas aos jovens das igrejas que ele fundou:
“Jovens, eu vos escrevi, porque sois fortes e a palavra de Deus permanece em vós, e vencestes o Maligno. Não ameis o mundo nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai.” (1 Jo 2: 14-15)
O mundo que não devemos amar e ao qual não devemos nos conformar não é, nós sabemos, o mundo criado e amado por Deus, não são os homens do mundo aos quais, na verdade, devemos sempre ir ao encontro, especialmente os pobres, os últimos. O “misturar-se” com este mundo do sofrimento e da marginalização é, paradoxalmente, a melhor maneira de “separar-se” do mundo, porque é caminhar exatamente para onde o mundo foge com todas as suas forças. É separar-se do próprio princípio que governa o mundo, que é o egoísmo.
Não, o mundo que não devemos amar é outro; é o mundo transformado sob o dominio de satanás e do pecado, “o espírito que está no ar”, o chama São Paulo (Ef 2, 1-2). A opinião pública tem um papel chave nisso, hoje também literalmente espírito “que está no ar” porque se espalha através do éter, através das infinitas possibilidades da técnica. “Se determina um espírito de grande intensidade histórica, ao qual o indivíduo dificilmente pode escapar. Deve-se seguir o espírito geral, é o óbvio. Agir ou pensar ou dizer algo contra isso é considerado insensato ou até mesmo uma injustiça ou um crime. Então já não se atreve a por-se diante das coisas e das situações e especialmente da vida de forma diferente de como tudo se apresenta[1]”.
É o que chamamos de adaptação ao espírito dos tempos, conformismo. Um grande poeta crente do século passado, T.S. Eliot, escreveu três versos que dizem mais do que livros inteiros: “Em um mundo de fugitivos, a pessoa que toma a direção oposta parecerá um desertor[2].” Queridos jovens cristãos, se é permitido a um ancião como João dirigir-se diretamente a vocês, eu lhes exorto: sejam daqueles que tomam a direção oposta! Atrevam-se a nadar contra a corrente! A direção oposta, para nós, não é um lugar, é uma pessoa, é Jesus nosso amigo e redentor.
Uma tarefa, especialmente, lhes é confiada: salvar o amor humano da deriva trágica na qual acabou: o amor que não é mais dom de si, mas somente possessão – muitas vezes violenta e tirânica – do outro. Na cruz, Deus se revelou como ágape, o amor que se doa. Mas o ágape nunca se separou do eros, do amor de busca, do desejo e da alegria de ser amado novamente. Deus não nos faz somente a “caridade” de amar-nos; nos deseja, em toda a Bíblia se revela como o esposo apaixonado e ciumento. Também o seu é um amor “erótico”, no sentido nobre deste termo. É o que explicou Bento XVI na encíclica “Deus caritas est”.
“Eros e ágape, – amor ascendente e amor descendente – nunca se deixam separar completamente um do outro […]. A fé bíblica não constrói um mundo paralelo ou um mundo oposto ao fenômeno humano original que é o amor, mas aceita todo o homem intervindo em sua busca de amor para purificá-la, abrindo-lhes novas dimensões ao mesmo tempo “(7 -8).
Não se trata, portanto, de renunciar às alegrias do amor, da atração e do eros, mas de saber unir o ágape com o eros, o desejo do outro, a capacidade de se doar ao outro, recordando o que São Paulo comenta como uma fala de Jesus: “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20, 35).
É uma capacidade que não se inventa em um dia. É necessário preparar-se para fazer um dom total de si mesmo a outra criatura no matrimônio, ou a Deus na vida consagrada, começando com o doar o próprio tempo, o próprio sorriso e a própria juventude em família, na paróquia, no voluntariado. O que muitos de vocês fazem silenciosamente.
Jesus na cruz não nos deu apenas o exemplo de um amor de doação levado ao extremo; ele nos mereceu a graça de podê-lo atuar, em pequena parte, na noss vida. A água e o sangue jorrados do seu lado chegam a nós hoje nos sacramentos da Igreja, na Palavra, até só olhando com fé o Crucifixo. Uma última coisa João viu profeticamente sob a cruz: homens e mulheres de todos os tempos e de todos os lugares que olhavam para “aquele que foi transpassado” e choravam de arrependimento e consolo (ver Jo 19, 37; Zc 12,10). A eles nos unimos também nós nos gestos litúrgicos que daqui a pouco se seguirão”.
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[1] H. Schlier, Demoni e spiriti maligni nel Nuovo Testamento, in Riflessioni sul Nuovo Testamento Paideia, Brescia 1976, pp. 194 s.
[2] T. S. Eliot, Family Reunion, part II, sc. 2: “In a world of fugitives – The person taking the opposite direction – Will appear to run away”.
(Tradução Thácio Siqueira, Associação Marie de Nazareth)
Por ACI Digital