Em maio, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizou o evento “UPA – Unicamp Portas Abertas”, que teve como objetivo apresentar a universidade aos estudantes do ensino médio. Muitos alunos salesianos participaram do evento para conhecer aquela que pode ser sua próxima instituição de ensino, entre eles um grupo do Colégio Salesiano São José, de Sorocaba. A experiência levou Luiza de Paulo Formaggine, aluna do colégio desde 2008, a escrever uma bonita crônica, mostrando o seu olhar sobre a visita e a gratidão à educação recebida até aqui.
Visitando a Unicamp
Ansiedade, reflexão e dualidade definem o dia que passamos na Unicamp. Hora, para mim, e acredito que também para os meus colegas, o ambiente universitário parecia distante, hora “a água batia no traseiro” e percebíamos que falta pouco para sermos nós, talvez não na Unicamp, talvez sim, por que não? Mas inevitavelmente seremos nós os universitários daqui alguns meses ou anos. E isso assusta. E emociona. E dá medo. E dá orgulho.
Eu achava que seria um dia de experiências únicas e sensacionais. Realmente foram únicas as experiências, mas talvez ficar meia hora esperando o ônibus que nos levaria até o prédio da Medicina não tenha sido tão sensacional assim. Nesse momento comecei a questionar a ideia que eu tinha antes de chegar lá. Imaginava que a infra-estrutura dos prédios não seria das melhores. Imaginei que os ônibus circulares estariam cheios e ao entrar na cidade universitária, comecei a imaginar que poderia ser um pouco pior com a chuva.
Mas, poderia também ser melhor e ainda mais único. E provar mais ainda o quanto nós estamos maduros, quando pensávamos uns nos outros e nos revezávamos na fila do ônibus – dois ficavam na fila, o resto do grupo debaixo da tenda, e íamos nos alternando – ou o quanto somos imaturos por não termos levado um guarda-chuva sequer.
Ainda na chuva, ficamos bravos com quem furou a fila. Indignados. “Olha lá, reclama da corrupção no Governo, mas fura a fila na cara dura!”. “Gente que fura a fila não pode ser médico. Aliás, não pode ser nada sem ética!”. Uma verdadeira tempestade em copo d’água. Ou não. Esse comportamento realmente gerou discussão sobre ética em nosso grupinho. Discussão molhada, séria e descontraída.
Chegou o ônibus. Logo começamos a cantar (dançar era impossível, estava muito cheio) as músicas que nossos pais tanto reprovam, mas que estão “na boca do povo”. E logo fomos acompanhados por quase todo mundo. Quase, porque, depois de algumas das “ricas” letras que entoávamos, uma garota de outra escola, em tom de reclamação, disse “podiam cantar uma música de verdade!”. Como se já estivesse combinado, ou como se uma chave tivesse virado na nossa cabeça, começamos, então: “Pai, afasta de mim esse cálice!”, “São as águas de março fechando o verão”… Mas não fomos acompanhados pelo resto do pessoal, não tivemos um coral bonito como nas ‘músicas de mentira’ anteriores. Poxa, ninguém conhecia o que estávamos cantando!!!
Prestando atenção no caminho, percebi muitas casas. Parecia realmente uma cidade. Nas garagens, bons carros. O tamanho das casas e o padrão dos carros iam aumentando. Estávamos chegando no prédio de Ciências Médicas! E isso era triste. Me dei conta de que nem todos os jovens que cantavam conosco poderiam ESCOLHER livremente fazer o curso que sonham e muitos que chegassem a escolher, dependeriam de transportes nada bons, como aquele em que estávamos. Apertado, abafado, demorado, complicado. E ficariam na chuva esperando. Ou teriam que andar, pois o ônibus é pago em dias normais e para estudantes da faculdade. Me dei conta de que somos privilegiados pelas oportunidades que temos. E quantas vezes não aproveitamos… Meu coração ficou apertado e com vontade de mudar tudo isso. Era só a primeira parada e eu já me sentia grata pela educação que recebi e recebo.
Chegamos “na Medicina”. O prédio era o contrário do que eu pensava. Estava bem cuidado. Tinha muita gente. “Mãe, fica aqui na fila para mim?”, “Filho, a fila de cardiologia é aqui e a de enfermagem é lá”, eu ouvia isso e me sentia tão feliz de não precisar estar acompanhada dos meus pais, feliz em ter que me virar sozinha. E, ao mesmo tempo, desejando que meus pais estivessem lá de carro para me levar até os outros extremos do campus.
Insegurança era a palavra. Medo de entrar na fila errada e só descobrir depois. Sensação ruim e boa de que está chegando a minha hora de me virar sozinha de verdade, não apenas por um dia. Medo da comida que eu fiz no dia anterior, e que levei para almoçar, estar ruim e não ter o mesmo tempero da mamãe. Mas… Felicidade em não ter mais vergonha de pedir ajuda e perguntar onde ficava a sala da palestra que eu queria assistir. Gratidão ao ouvir a bateria tocar e me sentir finalmente tranquila, almoçando no meio da “muvuca” enquanto outros ligavam desesperadamente para a mãe, pois não a achavam.
A ficha caiu. Os alunos que tivemos contato na Unicamp não tinham 18, 19 anos. Tinham 25, e estavam no primeiro ano da faculdade. Demoraram para conseguir entrar. Será que um dia nós conseguiremos? Toda a nossa autossuficiência ia por água abaixo. A concorrência é gigantesca, realmente, e pagar faculdade particular é cada vez mais difícil! Os 40 mil alunos (segundo as notícias) que estavam lá, as filas enormes para tudo, demonstravam a burocracia e a dificuldade de ingressar em uma universidade. Éramos mais alguns no meio do todo.
De longe, o prédio de Medicina era o mais cheio. Ninguém desceu do ônibus quando parou na área de Enfermagem. Médico ganha mais do que enfermeiro! Eu tentava não fazer julgamentos, mas observando diversas ações e falas das pessoas que lá estavam, pude compreender o apelo que se faz hoje em dia por uma “medicina humanizada”, por “tratamentos humanizados”. A sociedade está desumanizada e até uma das mais humanas profissões, na minha visão, está se tornando mecanizada e cética. Haja vista as constantes notícias de suicídios na comunidade estudantil de Medicina. É triste. Dá sensação de impotência.
O prédio de Ciências Humanas trouxe uma estranha noção de liberdade da qual eu discordo. Não havia filas gigantes. Era exatamente como eu pensava. Não tão bem cuidado quanto os outros locais. Cheio de rabiscos, mensagens escritas e imagéticas, parecia parado no tempo. Reivindicava muitas lutas atuais, como os preconceitos raciais e ao mesmo tempo saudava tempos e ideias como nos contextos de luta pela democracia. Me senti em outro contexto que não é esse em que vivemos. Tive a sensação de não ter a liberdade que eu pensava ter.
Olhares esquisitos para o nosso grupo não faltaram. Tiramos menos fotos do que queríamos e percebemos que a cada comentário sobre os grafites ou as pichações, esses olhares aumentavam. Ao ver um desenho de um grande olho e vários olhos pequenos, exclamamos “O GRANDE IRMÃO”. E corremos para tirar foto. Quem passava por nós não entendia. E nós transbordávamos de orgulho por termos feito tal relação. Entender, interpretar, criticar as mensagens expostas nos corredores das humanas era motivo de exaltação. Por isso os olhares estranhos, talvez.
Rubem Alves disse que “há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas”. Acredito que famílias também podem ser asas ou gaiolas. Eu tenho a sorte de ter tanto família quanto escola que são asas. E são essas asas que me proporcionaram tanto sentimento e reflexão nesse dia; que me encorajaram a voar, e, nesse vôo, ter vontade de mudar tanta coisa e desejar menos gaiolas para o mundo.
Gratidão.
Luiza de Paulo Formaggine