Pe. Ronaldo Zacharias é doutor em Teologia Moral, professor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, o UNISAL, onde foi reitor durante seis anos. É secretário da Sociedade Brasileira de Teologia Moral e atua na formação do clero, professors, agentes de pastoral e juventude.
A seguir, reproduzimos a entrevista sobre ética que ele prestou à Revista de Educação, da Associação Nacional de Educação CAtólica do Braisl, a ANEC, edição 155, janeiro e junho de 2018.
Entrevista sobre ética com o Prof. Dr. Pe. Ronaldo Zacharias, sdb
1. Prof. Ronaldo Zacharias, qual é a sua formação e área de atuação?
Minha formação específica é na área da Teologia Moral e, dentro do vas- to campo da Moral, minha paixão é pela Moral Fundamental e Moral Sexual. Tive a chance de fazer o doutorado na Weston Jesuit School of Theology, em Cambridge, nos Estados Unidos. O foco da minha pesquisa e tese foi a Moral Sexual. O mesmo se deu durante o mestrado, feito na Academia Alfonsiana, em Roma. Entre o mestrado e o doutorado, especializei-me em Educação Sexual num programa conjunto entre a Faculdade de Medicina do ABC e a Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana. Além de professor de Teologia Moral (desde 1992), coordeno (desde 2005), com a Profa. Ana Cristina Canosa, o curso de pós-graduação em Educação em Sexualidade do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL). Desde 2004, sou Secretário da Sociedade Brasileira de Teologia Moral e, nos últimos seis anos, fui Reitor do UNISAL. Além disso, tenho atuado muito na formação do clero e de religiosos, professores e educa- dores sociais, agentes pastorais e jovens em geral.
2. Podemos começar pelo básico: qual é a distinção entre ética e moral?
É muito comum usarmos o vocábulo “ética” como sinônimo de moral, assim como atribuir significados diversos aos dois. Há quem prefira o vocábulo “ética” para evidenciar que sua reflexão terá como fundamento a razão; outros preferem “moral” para deixar claro que, além dos fundamentos racionais, a sua reflexão se abrirá à perspectiva religiosa. Para uns, ética refere-se ao conjunto de princípios que orientam a conduta humana, com pretensão de universalidade. Para outros, moral refere-se à vivência concreta de tais princípios e, portanto, sua abrangência é apenas circunscrita a determinado contexto sociocultural. Há quem diga que a moral se preocupa com o “como devo agir”, enquanto a ética se volta para “que vida eu quero viver”. Nessa perspectiva, a moral move-se mais no campo do sentido de obrigatoriedade existente em todas as pessoas, e a ética, no campo da busca da vida boa, da felicidade. Como nem todos sabem “como agir”, a consequência é evidente: prevalece na sociedade uma moral heterônoma.
E, como nem todos sabem “para que” vivem, acaba prevalecendo na sociedade uma moral sem sentido. No meu ponto de vista, não dá para considerar ética e moral como antagônicas; pelo contrário, ambas são inseparáveis e complementares. Não é possível pensar num projeto de vida que prescinda de deveres e obrigações. Tais deveres e obrigações, porém, só têm sentido se implicados num horizonte que dê sentido e significado à própria vida.
3. Mais concretamente, o que significa isso?
Tanto a ética quanto a moral têm como objeto de estudo o agir humano e, mais especificamente, o “como” devemos agir em determinada situação, isto é, o que seria certo fazer em determinadas circunstâncias. A ética e a moral pre- ocupam-se com a prática de ações que sejam moralmente boas e apropriadas e, por isso, podem ser compreendidas como a expressão do nosso desejo de nos realizarmos como pessoas, de sermos plenamente humanos, e é isso que nos diferencia de todos os outros seres. O problema é que, muitas vezes, não sabemos o que nos realiza como pessoas e nos faz ser mais humanos; outras vezes, sabemos o que deveríamos fazer para isso, mas exercemos nossa liberdade de modo inautêntico, levando uma vida que, em vez de nos tornar mais humanos, desumaniza-nos, compromete nossa autêntica realização e o significado mais profundo da nossa existência. Outras vezes, ainda, nem nos damos conta do quanto somos influenciados por opções políticas, interesses econômicos, exigências do mercado, concepções fundamentalistas e relativistas, antropologias redutivas na abordagem do humano e, consequentemente, na concepção que temos de realização humana. Justamente por isso, não podemos abrir mão da convicção do que nos torna mais humanos, do que nos ajuda a ser mais gente, do que serve de ponto de referência ou critério na tentativa de determinar o certo ou o errado do ponto de vista da moralidade.
4. Então podemos dizer que é ético/moral o que humaniza e antiético/imoral o que desumaniza?
Sem dúvida! A ética e a moral, que podem ser assumidas como complemen- tares, já que têm o mesmo objeto e a mesma especificidade, são as ciências que nos orientam no esforço que fazemos para viver moralmente bem, para nos realizar- mos como gente, para nos humanizarmos. E, nesse esforço, precisamos, antes de tudo, compreender que necessitamos de alguns critérios para saber o que humani- za ou desumaniza, o que é certo ou errado, o que é bom ou mau. A resposta a essas questões amplia o significado conceitual da ética e/ou da moral como ciências, a ponto de podermos defini-las como ciências dos valores que orientam e iluminam nossa conduta, para podermos realizar-nos como pessoas.Se considerarmos que as decisões humanas são orientadas por um sentido, um fim, um ideal a ser alcan- çado (dimensão objetiva) e que a pessoa é responsável pelo exercício coerente da própria liberdade com tal sentido-fim-ideal (dimensão subjetiva), podemos dizer que a especificidade da reflexão ético-moral consiste em orientar a pessoa para que ela descubra o que deve fazer para se humanizar, crescer como gente (sentido metaético dado à existência). Em síntese, a especificidade da questão ético-moral não é outra coisa senão o juízo de valor sobre o que humaniza ou desumaniza a pessoa e, portanto, edifica ou corrompe a sociedade. Nesse sentido, a ética não é outra coisa senão um “processo de humanização”.
5. Mas como falar de humanização num contexto como o atual, caracterizado por uma certa cegueira ético-moral?
Falar de humanização num contexto sociocultural que moralmente se ca- racteriza pela cegueira pode parecer muito estranho e/ou ousado. A cegueira ético-moral atual expressa-se, por exemplo, por meio da perda da sensibilidade diante da dor e do sofrimento do outro, do desejo desenfreado de controlar a privacidade alheia, a ponto de não percebermos que a maldade e a miopia ética se ocultam naquilo que consideramos comum e banal no dia a dia. Num contex- to como esse, que se caracteriza pela liquidez de tudo e de todos, inclusive das relações, falar em humanização pode parecer fora de moda ou implicar nadar contracorrente. Daí a importância e a urgência de uma ética/moral do reconhecimento, da sensibilidade, da atenção e do cuidado. Somente assim se é capaz de entender o que, de fato, humaniza a pessoa.
6. Fica evidente, nesta sua perspectiva, que a questão ético-moral não pode reduzir-se a uma questão sociológica ou meramente jurídica.
Exatamente! Embora a reflexão ética tenha de levar em conta os dados da realidade, ela não se reduz a uma questão sociológica. Se para o conhecimento sociológico interessam os fatos e os dados estatísticos, isto é, a descrição e a análise do que acontece (juízos de fato), a ética move-se no mundo dos juízos de valor. Confundir as duas esferas significaria reduzir o critério de moralidade ao princípio quantitativo, ou seja, o que a maioria pensa ou quer seria sinônimo de bom, daquilo que deveria ser. A questão ética, entretanto, também não pode se reduzir puramente à ordem jurídica. Embora a ordem jurídica seja uma instância normativa válida e necessária para qualquer sociedade, a questão ética vai muito além da mera liceidade jurídica. O fato de uma prática ser definida como lícita ou ilícita, por si só, não garante a exigência ética que implica, necessariamente, primazia da consciência moral, escala pessoal de valores, realização do bem comum como expressão de justiça. Confundir as duas instâncias significaria reduzir o critério de moralidade ao princípio da legalidade, isto é, o que é permitido pela lei seria sinônimo de bom, daquilo que poderia ser feito. A questão ético-moral transcende os dados de fato e a liceidade jurídica. O que está em jogo é a humanização da pessoa, o seu crescimento como gente.
7. Isso não dá um significado novo à liberdade?
Acredito que sim. Se a ética (e/ou a moral) é um processo de humanização, cabe à proposta ético-moral orientar o exercício da liberdade da pessoa para que ela faça escolhas que a realizem como pessoa, que a tornem mais humana, mais gente. Todos sabemos que a natureza humana é também caracterizada pela imperfeição, limitação, fragilidade, vulnerabilidade (ser), e é justamente essa condição, à primeira vista negativa, que abre as portas para a superação dessa imperfeição, limitação, fragilidade e vulnerabilidade (dever-ser), a ponto de podermos afirmar que, na nossa própria natureza, encontra-se o apelo/chamado para sermos mais do que somos, para crescermos como gente. Toda vez que optamos por aquilo que corresponde a esse apelo/chamado, estamos vivendo nossa liberdade de modo autêntico. Liberdade, nessa perspectiva, jamais pode reduzir-se a fazer o que se quer. No contexto em que vivemos, tudo parece ser possível na busca da felicidade e no exercício da liberdade. É a ética (e/ou a moral) que chama a atenção para o fato de que nem tudo é conveniente. O discernimento entre o que pode ser feito e o que deve ser feito, entre o que convém e o que não convém passa pela resposta à mais profunda das questões ético-morais: o que humaniza e o que desumaniza a pessoa. E isso não depende unicamente da sua liberdade. A humanidade já deu um grande passo nesse sentido, ao encontrar nos direitos humanos a categoria ideal para formular a dignidade humana e a causa do ser humano. Trata-se de um critério objetivo.
8. Para a Igreja Católica, o que é autenticamente humano é autenticamente evangélico. Podemos dizer que o sentido da ética cristã também é a humanização da pessoa?
Dizer que a ética (e/ou a moral) nos orienta à realização da nossa própria natureza não significa, a priori, que saibamos o que fazer para nos tornarmos mais humanos. Crescer em humanidade, ser mais gente, humanizar-se são afirmações desprovidas de conteúdo, pois não nos dizem qual é o sentido mais profundo da nossa humanidade e qual é a vocação a que somos chamados. Essa carência de significado abre as portas para abordarmos o sentido da ética (e/ou moral) cristã e propor esse sentido como o conteúdo que falta para compreendermos o que significa buscarmos a realização da nossa própria natureza.Para isso, precisamos voltar nosso olhar para a pessoa de Jesus Cristo. Eleé a novidade do Pai, Ele é proposto como caminho, verdade e vida (Jo 14, 6), Ele é a plenitude do humano, Ele nos revela que só compreendemos quem somos quando nos abrimos aos desígnios do Pai a nosso respeito, Ele nos ensina que veio para servir, e não ser servido (Mc 10, 45), Ele nos garante a vida em abun- dância (Jo 10,10), Ele foi verdadeiro Deus e verdadeiro homem (Gl 4, 4). Pelo fato de Jesus ter sido verdadeiramente Deus, Ele pôde compreender profunda- mente a nossa humanidade. O fato de ter sido verdadeiramente homem permitiu-Lhe compreender as dificuldades para sermos plenamente humanos. Nisso reside a validade de termos Jesus como modelo: mesmo sendo difícil, podemos viver o que Ele nos ensinou.
Se considerarmos, portanto, a vida de Jesus, descobriremos que a Sua pre- sença entre nós foi expressão de amor, do seu amor e do amor do Pai por nós. O amor do Pai por nós chegou a entregar o próprio Filho para nossa redenção e a confirmar, assim, a existência do Seu Filho para os outros. O amor de Jesus por nós se revelou, na acolhida obediente da vontade amorosa do Pai, como serviço, entrega e doação de Si mesmo. Confirma-se, assim, a sua completa existência para os outros como expressão máxima de amor e do amor. Contemplando a vida de Jesus, descobrimos para que somos chamados e, portanto, o que devemos ser e como devemos viver para realizar plenamente esse chamado.
No entanto, tais afirmações não nos dizem como amar, o que fazer para manifestar e expressar o amor. Por isso, mais uma vez, precisamos voltar nosso olhar para a vida concreta de Jesus de Nazaré e, à luz do que foi dito, procurar entender o significado das opções que Ele fez para que a Sua vida fosse manifestação e expressão do Seu amor e do amor do Pai. Nesse sentido, é muito importante considerar o debate entre Jesus e o fariseu, perito na Lei (Mt 22, 34-40; Mc 12, 29-31) e a resposta de Jesus ao doutor da lei, quanto este O questiona sobre quem era o Seu próximo (Lc 10, 25-37).
No primeiro caso, ao sintetizar toda a Lei e os Profetas num único man- damento – “O primeiro [mandamento] é: Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento, e com todas as tuas forças. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não existe outro mandamento maior do que estes” –, Jesus abre o acesso à salvação a todos os que decidirem amar da forma pro- posta por Ele. Isso é tão verdade que o amor, na perspectiva evangélica, será o critério definitivo para a vida eterna (Mt 25, 31-46). No segundo caso, Jesus leva o seu interlocutor a reconhecer que o Seu próximo não é aquele que se coloca no seu caminho, mas aquele em cujo caminho ele decide se colocar (ao decidir parar e socorrer o homem espancado pelos ladrões, o samaritano diferencia-se do sacerdote e do levita, pois ele toma a decisão de pôr-se no caminho daquele homem, que sequer lhe pediu ajuda).
Em outras palavras, ambas as passagens bíblicas nos revelam que o amor não é uma questão de mérito. É expressão da decisão pessoal de fazer-se significa- tivo na vida de alguém. A vida toda de Jesus, no constante contato com publicanos e pecadores, deixa isso muito claro: se fosse por merecimento, a maioria não seria amada por Ele. O Seu amor antecipa-se, é gratuito, encontra a pessoa onde ela está, resgata o humano na situação na qual se encontra. O amor de Jesus e o jeito de amar de Jesus evidenciam que, quanto mais o outro for necessitado e vulnerável, mais será objeto de amor. É a necessidade e a vulnerabilidade do outro que me fazem decidir colocar-me no seu caminho e tornar-me significativo na sua vida.
9. Podemos dizer, então, que a ética cristã se caracteriza pelo esforço para discernir as exigências do amor?
Sim! E isso em cada situação concreta. Em outras palavras, discernir as exigências que derivam do amor implica, concretamente, esforçar-se para olhar e sentir a realidade com os olhos e o coração de Deus, concebendo a vida cristã como um chamado ao amor que exige uma resposta de fé. Ao reconhecermos o amor de Deus por nós, respondemos com amor, tanto a Ele quanto ao próximo. Responder a Deus com amor significa colocá-Lo no centro da própria existên- cia, considerá-Lo como único amor incondicional e empenhar-se para amá-Lo com todo o coração, toda a alma e toda a força (Dt 6,5). Isso requer considerar todos os demais amores e todas as demais experiências amorosas como relativos. Relativizar não quer dizer negar a dignidade e a importância de tais amores e ex- periências, mas apenas dar prioridade a Deus e à vontade Dele a nosso respeito até mesmo quando se trata de discernir e, se for o caso, renunciar, ao que se es- tima e deseja, mas que contradiz essa opção fundamental. Praticamente, trata-se de se perguntar o que o Amor – já que Deus é Amor – pede de nós em deter- minada situação concreta, e como servir mais e melhor os que mais precisam ou aqueles dos quais nos tornamos próximos – já que o amor, evangelicamente, é sinônimo de serviço e de doação de si. Pôr-se nessa dinâmica implica viver como reconciliados, isto é, deixar-se continuamente interpelar e converter pelas necessidades do outro, abraçar a cruz do sofrimento causado pela decisão de sair do centro, confiar na ação da graça que fortifica e sustenta, perseverar no amor mesmo quando se impuserem razões para se desistir dele.
10. Podemos concluir, então, que toda a riqueza de significado da ética cristã está sujeita à capacidade de a pessoa fazer as opções que Jesus fez?
Não somente fazer as opções que Ele fez, mas conformar-se aos seus sen- timentos. João é enfático ao afirmar que “o critério para saber se estamos com Jesus Cristo é este: quem diz que permanece nele deve também proceder como ele procedeu” (1Jo 2,5). A vida de Jesus foi uma completa existência para os outros. Sua vida foi expressão de amor-serviço-doação incondicional. Suas opções foram manifestação concreta do amor do Pai pelos pequenos e pobres, frágeis e vulneráveis. No seguimento a Jesus, existir para os outros e pôr-se do lado dos marginalizados e excluídos é um imperativo ético. Na perspectiva do seguimento, o que Jesus fez não é apenas um indicativo, mas um imperativo.
Estou convencido de que é somente a experiência do contato com o ou- tro, com a sua dor, com o seu sofrimento e com o que provoca tudo isso, que nos ajudará a fazer as opções que Jesus fez e, ao mesmo tempo, a compreender e a trilhar o caminho concreto de priorização do humano, de eticidade das ações e de equidade entre as pessoas. Mais ainda, quando confrontamos a dor humana com o Evangelho, descobrimos que Deus é sensível a ela e, por isso, ama com amor de predileção os que a sofrem ou suportam injustamente. Se as dores do humano tocam o coração de Deus, podemos imaginar como o comovem as dores que poderiam ser evitadas. Em primeiro lugar, porque ninguém foi criado para sofrer; em segundo, por ser o próprio humano a causa de tamanha injustiça. Por isso, fazer uma leitura teologal da realidade – e da realidade doída, sofrida, maltratada, machucada –, implica também tomar partido, isto é, pôr-se do lado dos mais frágeis e vulneráveis para libertá-los de tal situação. Só assim poderemos evitar aplicações distorcidas ou não inculturadas do Evangelho como an- dam fazendo tantos pretensos cristãos.
11. Isso significa uma crítica às bandeiras levantadas por tantos cristãos em defesa da vida, por exemplo?
Sem sombra de dúvida! Uma leitura teológica da realidade leva-nos a reconhecer que, ao fazer-se carne, o Verbo fez opções concretas para realizar a vontade de Deus. Portanto, uma leitura teológica da realidade é chamada a ser, eminentemente, evangélica, isto é, a partir dos sentimentos e das opções feitas por Jesus. E, se não resta dúvidas a respeito do lado de quem ele se colocou, uma leitura evangélica da realidade não pode ser feita senão a partir do sofrimento dos pobres, oprimidos e vulneráveis.
Não tem sentido cristãos que levantam bandeiras em defesa da fé, da vida, da moral e, ao mesmo tempo, põem-se do lado de quem e de tudo o que favore- ce ou promove a exclusão do humano, o desrespeito à sua dignidade e aos seus direitos fundamentais, a anulação da equidade entre as pessoas, a indiferença diante da injustiça em todas as instâncias, a negação do respeito à pluralidade e à diversidade. Não tem sentido, ao menos evangelicamente, levantar a bandeira da ética da vida e ignorar a da ética social. Isso não passa de uma nova expressão do farisaísmo hipócrita, tão condenado por Jesus.
Tem sentido, evangelicamente, seguir Jesus e pôr-se do lado de quem discrimina, desrespeita, violenta, agride, massacra, pisoteia a dignidade e os direitos das pessoas? Mais ainda, tem sentido considerar-se seguidor de Jesus e empreender “guerras santas” cheias de ódio, discriminação, intolerância, desrespeito, animosidade em nome da defesa da fé ou da doutrina? Estamos assistindo a um desfile de aberrações nesse sentido que nos levam a concluir que Deus não está em tais “guerras” e que estas nem podem ser chamadas de “santas”, quando tudo o que fazem gera divisão e, por isso, expressa o que de mais diabólico existe em nós e no meio de nós.
12. Pode aplicar o que está afirmando a dois exemplos de questões ético-morais?
Uma primeira questão: basta acompanhar a “discussão” sobre gênero no Brasil para perceber o quanto gênero se tornou uma questão ideologicamente ma- nipulada. Criaram um fantasma que acabou assombrando tantas pessoas, inclusive instituições religiosas, surpreendidas pela falta de preparo sobre o assunto e, consequentemente, facilmente manipuláveis. Gênero tem múltiplas dimensões – biológi- ca, psicológica, sociocultural, política, econômica, jurídica, religiosa, espiritual, ética e teológica – e, justamente pela complexidade da questão, não pode ser abordado de forma irresponsável, acrítica e “terrorista”, mesmo se tais abordagens se revistam do manto do sagrado, como tem acontecido. Reduziram gênero a uma ideologia nefasta a ponto de se esquecer que esse viés também é ideológico e tão nefasto quanto o que procuram condenar. Os estudos de gênero deveriam interessar a todos, pois estão em íntima relação com as sexualidades, as identidades e as corporeidades. Reconhecer a diversidade e assumi-la como referencial para a vivência e realização humana, comprometer-se com a justiça e a equidade nas relações, denunciar toda forma de violência e exclusão baseada na diferenciação sexual ou na orientação afetivo-sexual, promover o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais do humano são questões intimamente relacionadas com gênero. Mas tanta gente que se diz “de bem” tem-se comportado de forma irresponsável ao apoiar discur- sos inconsequentes nesse campo, porque são ignorantes da real problemática em questão. Ignorantes no sentido de se aproximarem do tema sem nenhuma hermenêutica e, por isso, acabarem semeando confusão, desrespeito, violência e ódio.
Uma segunda questão é o “projeto” Escola sem Partido. Um projeto de lei que amordaça, reveste-se de controle policialesco para criminalizar a prática docente, transforma os professores em doutrinadores abusivos a serem combatidos, reduz a escola à extensão do espaço doméstico, sem a devida noção de que os contextos familiares são múltiplos e, muitas vezes, bastante distantes do ideal almejado. Na realidade, o que está por trás de um projeto ideológico como esse é a compreensão de educação como algo isento de reflexão e de crítica, a tentativa de anular a individualidade e o poder emancipatório do aluno, a dificuldade de reconhecer o aluno como sujeito de direitos capaz de ser autônomo e autocrítico, uma concepção de família que simplesmente desconsidera a realidade na qual vive a maioria dos estudantes. Na verdade, todo “projeto” que visa proibir que determinado assunto seja tratado é abusivo e desrespeitoso, pois tudo o que se refere à vida, à humanidade, à casa comum deveria ser objeto de interesse e preocupação dos educadores. Imersos nas redes sociais, os alunos têm acesso ao mundo e a qualquer tipo de assunto na palma da própria mão. Querer proibi-los de abordar o que se refere à vida, como sexualidade, gênero, política, história, religião, é subestimar o papel da educação na formação da consciência crítica e até mesmo profética. E o pior de tudo é que oportunistas de plantão, sem a devida formação e sem capacidade de hermenêutica, julgam-se competentes para assumir o papel de censores, substituindo o compromisso educativo pela repressão autoritária.
Os dois exemplos citados mexem com questões ético-morais de suma relevância: autonomia, autenticidade, autorrealização, liberdade, responsabilidade, projeto de vida, valores, normas, consciência, direitos humanos. “Apropriar-se” deles em nome de Deus e, por causa deles, julgar, condenar, perseguir, odiar, dividir, amordaçar é uma postura eminentemente antiética, imoral e até mesmo pecaminosa, visto que o nome de Deus é tomado em vão. Alguém que se põe no seguimento a Jesus não pode ser indiferente ou cúmplice diante de propostas que excluem, marginalizam, discriminam. Os sentimentos e as opções de Jesus são imperativos para quem quiser segui-Lo.
13. Podemos afirmar, então, que a ética (e/ou a moral) não pode abrir mão dos ideais a serem propostos para que o ser humano se realize e edifique uma sociedade a mais perfeita possível?
De fato. Embora a proposta ético-moral lide sempre com ideais, ela não pode esquecer-se de que tais ideais são propostos a pessoas que vivem em deter- minados contextos socioculturais que podem favorecer a realização de tais ideais ou até mesmo dificultá-los e impedi-los de serem realizados. Trata-se de compreender bem a relação entre ser e dever ser e entre real e ideal. Levantam-se, aqui, dois aspectos a serem considerados: primeiro, o ideal tem uma dimensão objetiva (o ideal em si mesmo) e uma dimensão subjetiva (o ideal deve ser ideal para alguém em determinada realidade concreta); segundo, diante do objeto – nesse caso, o ideal – a prioridade é sempre do sujeito, aquele que vive em determinada realidade concreta.
O fato de a pessoa não conseguir abraçar o ideal que lhe é proposto não significa que as suas ações careçam de significatividade ético-moral. Para muitas pessoas, o ideal nunca poderá ser alcançado devido aos limites objetivos da realidade ou delas próprias. Para outras, o ideal só será parcialmente alcançado. Para outras, ainda, o ideal poderá ser experimentado concretamente. Nos últimos dois casos, toda absolutização se torna relativa: o fato de o ideal ser parcialmente realizado, hoje, não significa que não o possa ser mais plenamente amanhã. E o fato de ele ser vivido plenamente hoje, não significa que não o poderá ser apenas parcialmente amanhã. Enquanto o ideal se situa na esfera do desejável, o real situa-se na esfera do possível. O desejável é todos se realizarem plenamente como pessoas e todos amarem como Jesus amou, com tudo o que isso implica (de acordo com um sentido profundo dado à própria existência e no exercício mais autêntico possível da própria liberdade). Mas isso nem sempre é possível. E o fato de não ser possível não significa que passos concretos não estejam sendo dados em direção a uma vida mais humana e mais evangélica, mesmo se esses passos forem os primeiros e, consequentemente, não expressarem o sentido último da existência nem o exercício autêntico da liberdade. O mesmo vale para a edificação de uma sociedade mais humana, justa, solidária, fraterna. O fato de parecer utopia advogar uma sociedade como essa não invalida a força crítica e profética do ideal que tal utopia propõe. Por sua vez, é muito importante ter presente que, apenas partindo da realidade, teremos condições de repensar a significatividade da nossa proposta ético-moral ou até mesmo da nossa ação educativo-pastoral.
14. Uma de suas paixões é o ensino da Moral Sexual. Qual é a sua percepção sobre a sexualidade juvenil?
Trata-se de um fenômeno diante do qual, como educadores, não podemos ser indiferentes e muito menos negligentes. A própria Igreja afirma que a realidade juvenil é um “lugar teológico” em que o pastor-educador deve mergulhar para compreender os sinais do Espírito que, sabiamente, sopra quando e como quer. Portanto, mais do que julgar as várias experiências que os jovens vivem, devemos tentar compreendê-las, deixarmo-nos questionar pelos desafios e pelas oportunidades das quais são portadoras para podermos dirigir-lhes uma proposta que os ajude a viver uma vida mais plena e crescer em sabedoria e graça. Todos, mesmo que os fatos mostrem o contrário, querem amar e ser amados. Esse é o desejo mais profundo no coração de cada jovem. Mas esse desejo, por si mesmo, não diz como viver nem o que fazer para se realizar no amor. Consequentemente, os jovens fazem uma série de experiências para aprender a amar e chegar a compreender que o amor é a única realidade que humaniza a sexualidade, porque a eleva e a integra. Muitas vezes tropeçam pelo caminho, não tanto porque são imorais, mas imaturos. Atravessam uma das fases mais difíceis da existência e, muitas vezes, encontram-se sozinhos quando o assunto é vivência da sexualidade. Em geral, não sabemos o que propor a eles. Ajudar os jovens a assumir o amor como projeto de vida e a integrar a sexualidade nesse projeto é, portanto, o nosso maior desafio. Ousaria dizer, é um dos grandes desafios no processo de educação para a fé. Desafio para o qual muitos de nós, pastores-educadores, não estamos preparados. Assumir a realidade juvenil como “lugar teológico” significa acreditar que é possível fazer uma profunda experiência de Deus no encontro com os jovens, na partilha da sua vida e no trabalho educativo com eles.
15. E como entender a formação ético-moral dos jovens?
Como uma das mais importantes urgências do nosso tempo. Os jovens precisam ser ajudados na construção do próprio projeto de vida, o que supõe educação para os valores e formação da consciência, a fim de que sejam capa- zes de dar um sentido profundo à própria existência e viver para a realização desse sentido. Os jovens precisam ser educados para a autonomia e liberdade responsável, a fim de que, no exercício da própria liberdade, façam escolhas que os realizem como gente, isto é, que os ajudem a crescer em humanidade. Os jovens têm o direito de ser ajudados a discernir as exigências do amor em todas as situações que vivem e em cada uma das relações que estabelecem com as pessoas. Se tanto os jovens quanto os educadores compreendessem que a formação ético-moral não é outra coisa senão um processo de humanização e que a autorrealização é o coração desse processo, eles se encantariam pelo ideal ético-moral.
Quando falamos de formação ético-moral, devemos entender que é o humano que está em jogo; são as suas relações que importam. Portanto, considerando que nos realizamos por meio das relações que estabelecemos e das opções que fazemos, a abertura ao outro torna-se o caminho concreto de humanização, e o compromisso com a defesa e promoção dos direitos fundamentais da pessoa, o modo mais concreto de expressá-lo. Não podemos, como educadores, continuar propondo uma moral que seja realizada numa espécie de vazio relacional ou que diminua as possibilidades de liberdade dos educandos. Estaríamos compro- metendo o processo de humanização dos nossos educandos.
Para nós, educadores cristãos, há um outro dado a ser considerado: muitas vezes, confiamos demais em nossos projetos e em nossas intervenções educativas e nos esquecemos de que precisamos nos abrir à graça de Deus. Ideais por demais abstratos, artificialmente construídos, distantes da situação concreta em que as pessoas vivem, podem dificultar e até mesmo impedir a ação da graça. Pior ainda quando tais ideais são sinônimo de conformidade com a doutrina. Eles poderão limitar ou até mesmo anular a ação do Espírito. O Espírito de Deus é graça, que age como quer e quando quer. E, no seguimento a Jesus, aprendemos, dia a dia, que o Espírito nos educa para a verdade, para a liberdade, a autonomia, a responsabilidade, a sensibilidade, para o cuidado, para o amor, a misericórdia, para um modo de ser que se faz autodoação e opta sempre pela inclusão. Sob a ação do Espírito, entendemos que toda proposta ético-moral é sempre relativa e, por isso, até mesmo dispensável. Mas, porque ainda não caminhamos no Espírito como deveríamos caminhar, é que precisamos dela!