Por Anderson Bueno
Pe. Luís Gonzaga Piccolli tem em si o espírito missionário. Respondendo um chamado do reitor-mor, quase tornou-se missionário na Amazônia, mas seu destino final foi a África, de onde parece não querer mais voltar.
“Em Manaus eu só fui com a ideia do reitor-mor, mas ele mesmo não a concretizou. A passagem… Hoje vejo que é o estilo de Deus, sabe, eu fui aprendendo que Ele é muito delicado. Ele não invade a pessoa, não irrompe a pessoa. Só algumas vocações especiais, como São Paulo, por exemplo, que Deus teve que pegá-lo pelo pescoço e jogar do cavalo abaixo. Mas em geral para nós Deus é muito sereno, muito silencioso, fala baixinho. Só o que quer escutar e que presta atenção é que vai perceber a voz de Deus, a vontade de Deus… E também no silêncio, na meditação, no mistério da sua interioridade é que Ele vai respondendo, não responde no oba-oba não. Então aos pouquinhos eu fui chegando ao sacerdócio e depois ao convite para ir para a África.
Eu não escolhi (ir para a África), foi o reitor-mor que disse para escrever uma carta para ele todos os que sentissem um apelo de Deus para ir para a África. E de fato, na resposta que ele me deu, primeiro ele me apontou Amazonas, ficar no Brasil. Eu aceitei, mas depois ele achou melhor e disse “Não, você pode ir para a África, vai para Angola”. E fui. Porque para mim a voz do superior na época, como também agora, é a voz de Deus.
A primeira impressão foi não estar em uma terra diferente do Brasil. Logo senti aquele povo meu. Não tive nenhum choque de cor, de raça, não tive. Nunca. Logo senti os africanos meus irmãos, meus mais velhos, os jovens meus amigos e são até hoje. Não sei não, mas quando fiquei padre, eu pedi para Deus três dons, três graças e um deles era justamente esse: ‘Deus, me dê a graça, o dom de gostar da juventude e se for possível que eles gostem de mim’. Então eu tenho uma certa percepção e faço uma certa experiência que até hoje esse dom funciona porque, por exemplo, nesses dias que vivo em Moçambique, os aprendizes que ficam conosco lá só cinco meses e meio, eles, como é que me chamam lá? Eles fazem os cumprimentos que fazem os jovens, de bater na mão e não falam meu nome, dizem assim: ‘Esse padre é meu amigo’. E eles não sabem nada disso que me aconteceu espiritualmente.
Se essas experiências que acabei de contar são muito bonitas, empolgantes, eu fiz a experiência inicial de uns cinco, seis meses de aterrissar na cultura afriacana. Foi duro, eu me sentia fora da terra. Do povo não, me sentia dentro. Mas em África me sentia estranho. Eu levei quase seis meses para voltar a me sentir livre, me sentir localizado, aterrissar. Então é coisa mais da mímica, mais psicológica do que afetiva. E tive que ir me acostumando às culturas, às diversas expressões culturais, sabendo que eu mesmo nunca ia ser um africano. Nunca deixei de ser brasileiro nem vou deixar, mas tinha que encarnar-me naquela cultura lá. E penso que o suficiente a gente consegue fazer.
Eu me sinto melhor em África, mais localizado, do que me sentia aqui em São Paulo. Eu me achava aqui em São Paulo num certo contraste entre sonho. Eu sonhava com pobres, eu sonhava com jovens que evoluem, que saem de uma situação pequena, baixa para uma situação de desenvolvimento, dignidade. Então é claro que a África para mim foi a realização desse sonho. E é por isso que em África eu me sinto tão bem, porque parece que bateu com o meu sonho, estou no meio dos pobres. Em Angola eram pobres no meio da riqueza. Agora estou há quase 12 anos em Moçambique, estou no meio dos pobres, no meio da miséria. E eu não pertencia a Moçambique, só me pediram meus superiores de fazer um trabalho lá de seis anos. Fui. Quando acabaram seis anos, me pediram mais três. Fiquei, mas sabendo que iria voltar para Angola. Quando fiquei nove anos já comecei duvidar. Falei ‘Se eu fiquei nove anos aqui, será que Deus não está pedindo para eu ficar de vez? Porque lá em Angola não tenho mais nem uma folha de papel, nem uma lapiseira, não tenho mais nada lá, só falta trazer a minha alma para cá, né, de vez’. Então eu pedi aos superiores, rezei muito, me aconselhei, pedi aos superiores para permanecer em Moçambique. Agora eu vejo retornando ao meu sonho inicial, de novo fazendo minha opção de permanecer com os mais pobres.
O maior retorno é o crescimento do jovem. E um crescimento rápido. A África precisava muito mesmo do carisma salesiano porque, como nós temos o Sistema Preventivo, razão, religião (fé) e coração (amizade, carinho, amor), lá na África eu faço a experiência contínua de que para entrar na vida do jovem, do adolescente, você não entra pela razão como muitas vezes acontece aqui em São Paulo, começa a raciocinar, começa a falar, a trazer filosofia, a religião e daí por diante a nível de cultura, a nível de razão, tem que convencer… Na África não, isso não funciona, tem que começar pelo coração. Ficou amigo de um africano, ele não te larga mais. A fidelidade aos jovens, aos adolescentes, aos casais, aos adultos, aos mais velhos começa sempre da simpatia, do amor, da atenção, do carinho, aí eles entregam também a razão e a religião. É muito bonita essa experiência. E é claro que aí nasce também o desejo deles de não largar mais essa oportunidade de crescer. E nasceu disso uma outra grande experiência que fiz e faço de como o africano gosta de aprender, gosta de estudar, gosta de dias de formação, não perde.
Quando Deus chama uma pessoa, Ele não chama de uma maneira genérica que você pode escolher o que você quiser. Deus é muito cioso, quando Ele te escolhe Ele já sabe pra quê, porquê, para onde. Nós é que não sabemos nada, mas aos poucos nós vamos descobrindo o que é que vai batendo com os desejos de Deus e eu mesmo descubro que, Deus, desde quando pensou em me criar, acho que Ele sempre me viu padre, sempre me viu salesiano, sempre me viu missionário.
Eu diria que ser missionário é ser um agraciado, ganhar na loteria de viver a experiência de uma liberdade incrível. Uma liberdade que não é só física, não é só territorial, não é só familiar, não é só cultural, é tudo isso, mas é também espiritual, é anímica, é psicológica e também existencial e para mim isso é muito importante. Um dos maiores dons que agradeço a Deus como missionário é de viver uma liberdade que não tem parâmetros, é infinita, é bonito.